quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Mãe Onça




A mãe onça despertou para o seu interior com uma vontade imensa de sumir. Ela que há muito tempo não se via, não se escutava, não se cuidava, precisou quebrar a pata para se voltar a si mesma.
Ao contrario do que dizem os especialistas em cura e linguagem do corpo, este momento de ruptura seria o tempo ideal de a onça começar a colocar seus pensamentos em ordem e movimentar a vida a seu favor. Este era o tempo da mudança, da estrutura, da organização, tempo de parar.
Infelizmente na selva em que a mãe onça vive o tempo não para. Os animais devoram uns aos outros sem piedade e mãe onça mais uma vez adia seu comprometimento consigo mesma.
No tempo em que ela deveria pensar, ela age. No tempo em que ela deveria focar ela destoa. E na pausa que ela deveria se dar, ela se perde.
A onça não constatou imediatamente a chegada da noite. A sua volta tudo se tornou escuro, e ela se viu sozinha. Onde estavam as crias? O marido? Ela estava na selva escura, sozinha, com a pata machucada e sem comida.
A fome assolou a vida da mãe onça que não teve outra escolha se não pedir ajuda as crias e marido para se alimentar. Justo ela, animal arisco que nunca precisou de nada e ninguém pedindo ajuda para dilacerar um animal morto.
Mas engolir o orgulho não foi suficiente para a mãe onça, ela ainda não havia aprendido a lição que só tempo de parar lhe ensinaria. E como era de costume a mãe onça adiou, uma vez mais o que deveria fazer e ao invés de dar atenção a si mesma, aos seus sentimentos, sua família e a preservação de seu território na selva, ela ignora.
Se a mãe onça tivesse consciência das conseqüências de cada ato de sua vida, ela jamais ignoraria tais sinais que lhe foram enviados.
Porém a mãe onça ignorou e não só ignorou a si mesma como ignorou suas crias. As pequenas oncinhas cresceram sem referência, e se viravam na selva conforme podiam, devido à ausência da mãe.
A onça macho já havia abandonado a mãe onça e sua cria muito antes de tudo isso, o que só agravava ainda mais a situação.
Mas a mãe onça não esmoreceu e construiu seu ninho com suas criais e defendeu seu território. Ela sempre foi uma onça guerreira e batalhadora.
De uns tempos pra cá que a mãe onça mudou, apagou e foi perdendo a força. Ninguém sabe bem porque, mas ao não se conectar consigo mesma e aos seus filhotes, ela perdeu a capacidade de se relacionar e quando a família tinha uma idéia ela mudou os planos e depois que tinham um plano ela mudou de idéia.
A idéia da mãe onça contrapõe totalmente a da mãe coruja, porque ao contrario da coruja, a mãe onça ataca e dilacera.
As crias possuíam a ilusão de que um dia a sua casa na floresta seria respeitada e cuidada como deveria ser, mas a mãe onça abusava da água dos rios e da luz do sol, sem mencionar o seu descaso com os ossos de animais mortos espalhados pelo caminho bem como os buracos encravados pelo chão. Ilusões como estas ou até a de que um dia haveria critério em suas colocações, que distanciavam cada vez mais a família das onças.
A mãe onça nunca aprendeu a delegar nem administrar o próprio lar, mas quanto a isso as oncinhas não podiam interferir, pois convivendo com outras famílias percebiam que era uma deficiência de sua mãe.
Um belo dia, porém, como era de se esperar a mãe onça que de coruja não tem nada, ao invés de educar, acolher e aconselhar abandona a cria.
Não é a primeira vez que os papeis se invertem na família, onde filha é mãe e mãe é filha e pai é ausente.
Após longas seqüências de decepções que pareciam não tem fim nem volta, a atitude da mãe onça é a de pular fora.
No reino da selva onde não há regras, escrúpulos e o lema é a individualidade, a onça vira as costas para seus desafios de mãe e abandona o ninho.
As crias só poderiam ser feras e aredias. Uma mãe nunca deveria abandonar seu ninho, quem os abandona são os filhotes que cresceram, com ela aprenderam, e vão em busca de encontrar sua própria família.
Uma atitude que só seria justificada, caso a mãe onça tivesse encontrado uma onça macho forte e poderosa, e com ele fosse criar nova casa, para a nova família.
Atitude não justificada, a mãe onça abandona as crias, e deixa uma batata quente de lembrança juntamente com sua energia estagnada de anos a fio para que suas crias mais uma vez limpe a sujeira que ela deixou.
Mas a mãe onça está tão perdida que já nem sabia mais o que estava falando. No ímpeto de sua impotência, a conclusão que chegou foi à fuga da sua realidade. Mal sabia ela que não importa onde quer que se vá às mudanças só ocorrem dentro de nós, e que juntar um cordeiro a uma onça mãe não faz dele uma onça macho.